As luvas
- «Ó Álvaro, anda cá por favor! Foste tu que meteste as minhas luvas de borracha aqui, assim, todas embrulhadas? Ficaram cheias de água, uma nojeira, mal posso pôr as mãos aqui dentro sem que fiquem todas porcas. Então eu compro as luvas para não dar cabo das mãos e depois vou usá-las e está isto aqui tudo assim, numa valente porcalheira», comecei logo eu e nem o deixei falar. Ele espantado com a minha alteração. Eu estava alteradíssima.
- Tu tens estado pelos cabelos com ele.
- Completamente. Ele muito surpreso, a dizer que eu estava a fazer uma tempestade num copo de água. Uma tempestade num copo de água, vê só! E eu digo-lhe «olha, acabou, acabou tudo, pega nas tuas coisas, vai para outra casa, não sei, para a casa da tua mãe, para uma segunda morada que tenhas, eu fico com o fardo, fico com as crianças, cuido da casa, até te fico com o cão que quiseste arranjar, mas, pelo amor de Deus, vai-te embora. Estou saturadíssima, incapaz de continuar a lidar com a tua falta de consideração. Eu bem quero sentir amor, mas só tenho este peso em cima, sinto que não me vês, entendes?»
- E ele? Deve ter ficado para morrer, não? Olha a Luísa. Finalmente. Apanhaste muito trânsito? Pois, a avenida está horrorosa. Senta-te e ouve. Aqui a Maria da Graça está a contar que deixou o Álvaro por causa de umas luvas de borracha. Esta mulher não anda aqui a brincar.
- Ela andava saturadíssima. Tu andavas saturadíssima, Maria da Graça. Ainda bem que deste este passo. Ai, bom dia, desculpe, nem o estava a ver. Quero um abatanado e um daqueles bolos maravilhosos que vocês têm com o chocolate derretido por dentro. Esses. Obrigadíssima.
- Já nem sei onde ia, mas bom, disse-lhe tudo o que sentia e ele começou a rir-se. Nem imaginam os meus nervos. Se não fosse uma pessoa controlada, tinha-me descabelado e tinha começado a trepar paredes. «Qual é a graça?», perguntei-lhe logo eu enervada. E ele a rir descontrolado. Não estão a ver bem. Completamente descontrolado. Agarrado às paredes, vocês não imaginam. Ai, sim, traga-me um cafezinho. Obrigada. Esse bolo tem um aspeto maravilhoso, Luísa. Ainda peço um para mim.
- Mas e então?
- Então teve o desplante de me dizer que não tínhamos filhos e que não sabia de que crianças eu estava a falar. Que o único cão de que se lembra é de loiça e que a casa – vejam bem – é dele e que, se eu queria terminar que me pusesse a andar. Disse assim: põe-te a andar. Um discurso lamentável.
- E tu?
- Desgostosa. Aterrada. Como é que eu partilhei a minha vida durante três anos com um homem assim. Isto é terrível. Primeiro trazendo a lume que o meu ventre não lhe deu um filho, depois fazendo pouco do único animal de estimação que encontrei que reunia todas as condições emocionais para não devastar uma família: um bicho que fica bem com o sofá e as cortinas, um bicho que não ladra e que por isso não arranja problemas com a vizinhança, um animal sempre doce, que não tenta morder os filhos dos amigos, um animal que não deita pelo, um ser tão especial que nem nos obriga a ter de o passear em dias de chuva e mesmo assim, sem vacinas nem desparazitantes, está ali, no hall de entrada, sempre atento à nossa chegada, sem nos saltar para a perna, sequioso de alguma atenção.
- Esse Álvaro é um cafajeste sem coração. Essa é que é essa. Eu até vou pedir outro Garibaldi porque me foram abaixo os níveis de açúcar. Também queres um? Bem precisas. Não? Estás sem apetite. Como te entendo.
- Mas e então, ele saiu de casa pelo menos?
- Lamentavelmente, não. Confirma-se que a casa é dele. Mas é dele apenas porque nunca quis comprar uma em conjunto. Quando decidimos fazer vida conjugal, depois da morte da minha querida mãezinha e de aquele senhorio asqueroso me ter dito que se eu quisesse lá morar teria de pagar um valor astronómico pela casa; por essa altura pareceu-nos bem ficarmos ali. A casa é bem situada, perto do trabalho do Álvaro e eu não me opus. Já sabem como eu sou: uma pessoa que não levanta entraves a ninguém e que quer é viver a bem com os outros. Mas insisti que então tínhamos de fazer partilhas, que, ou ele me dava metade do que a casa valia, ou a vendíamos e cada um ficava com a sua parte e não se falava mais nisso.
- E ele?
- Luisa limpa a boca, que vergonha. Chocolate por todo o lado. Conta, Maria da Graça. Conta.
- Então ele ainda se riu mais. Por momentos pensei que me morria ali apanhado do coração, porque a dada altura deitou a mão ao peito meio aflito, assim com uma pieira estranha. Fui para o acudir e repeliu-me. Que não precisava de ajuda, estava bem, era só alegria a mais. Chegou até a chamar-me de humorista. Depois, pondo-se sério, disse-me coisas abomináveis. Obscenas. Que eu não tinha direito a nada porque não éramos casados, que era por saber que eu, mais tarde ou mais cedo, me revelaria uma rameira oportunista que nunca tinha assinado papéis comigo. A casa, aquele lindo imóvel, estava na família dele há anos, desde o tempo dos avós e ele não o punha a prémio por dá cá aquela palha. Eu contrapus: «Sem mim esta casa era um chiqueiro. Sou eu que a cuido e que a decoro todos os dias, por isso é que se respira aqui dentro».
- E ele? Reconsiderou?
- Nada. Irredutível. Que eu era uma lambisgoia, que não passava de uma falsa tiazoca, uma gaja (chamou-me de gaja, nem imaginam) com tom metido a afetado que não queria fazer nada e que achava que dar ordens à senhora que cuidava da limpeza três vezes por semana era ter um trabalho que se apresentasse.
- Disse-te isso um homem que gere uma empresa. Até parece que não sabe o que custa mandar em pessoas.
- Exatamente. Logo eu, que pouco depois de o conhecer tive a oportunidade de ir gerir um fundo, uma coisa grande de um amigo de uma tia minha, e deixei tudo, para o acompanhar na carreira dele e cuidar da nossa vida, dos nossos filhos e dos nossos animais. Adoramos animais.
- Ai, como se chama o cãozinho de loiça?
- Válter. Não é amoroso?
- E com isto, quem vai ficar com o pobre Válter? Deve estar destroçado, porque os bichos, parecendo que não, sentem muito estas coisas.
- Eu, no meio de toda aquela troca de galhardetes, a emoção foi tanta, que me comecei a sentir mal. Nem imaginam. Sentei-me, bebi uma água com açúcar e ainda lhe disse que se calhar aquilo tinha sido tudo um exagero, que nos amávamos muito e que eram evidentemente coisas que se diziam no calor do momento.
- Claro. Uma pessoa quando se passa dos carretos só diz o que não quer. E ele?
- Ele disse «tá bem, tá bem. Depois de recuperares as forças faz mas é as malas e põe-te a andar. Eu vou passar uns dias a Paris porque tenho lá uns compromissos e quando voltar não te quero ver aqui».
- Que insensível. Isso é inaceitável. E tu o que fizeste?
- Eu estou aqui convosco. O Álvaro ainda não voltou de Paris. Liguei-lhe para saber se poderia aguardar mais uns dias que eu saísse. Afinal de contas tenho muitos pertences e tenho de arranjar com quem deixar o Válter enquanto mudo de casa.
- E vais para onde?
- Era isso que queria ver convosco. A casa da minha tia está a ser restaurada. Uma casa lindíssima ali para os lados da Avenida do Brasil. Mas é uma casa grande e a família quer garantir que fica tudo feito com os melhores materiais e os melhores profissionais. Só a canalização está a ser um roubo. Um roubo. Nem imaginam. Por isso queria ver se uma das minhas amigas me cedia uma das vossas casas, até pode ser uma daquelas que têm para o norte, ia fazer maravilhas por mim apanhar outros ares.
- Luisa, limpa a boca, querida. Ai, Maria da Graça, se eu soubesse deste predicamento não tinha vendido a casa dos meus avós. Gostava tanto daquela casita, bonita, pitoresca, há anos e anos com a família, mas ia degradar-se, por isso vendemos.
- Pois, eu também vendi pela mesma altura que a Margarida. Até falei contigo, Margarida. Lembras-te?
- Lembro, lembro, claro.
- Engraçado, nunca falaram comigo que iam vender essas casas.
- Pois, são coisas menores, uma pessoa também não anda com estes assuntos aos sete ventos.
- Vais fazer o quê, então?
- Vou ligar ao Dr. Antunes.
- Quem é o Dr. Antunes? Nunca nos falaste dele.
- Pois não. É um amigo de família. Neurocirurgião. Um homem um pouco mais velho que sempre engraçou comigo. Vou saber se precisa de alguém que lhe dê uma ajuda lá no consultório, uma pessoa com experiência a comandar equipas, que a gente já sabe como é que as enfermeiras e as recepcionistas são, se puderem não fazem nada.
- Olha isso é que é boa ideia.
- É, não é? Também me pareceu.


