Detesto andar de avião. É um tormento a que me sujeito porque quero chegar a sítios e não tenho dias de férias suficientes para ir de carro ou num barquinho a remos oceano afora.
Nos dias que antecedem a viagem, por mais curta que possa ser, vou tendo conversas com a minha própria cabeça, deixando a cargo de um neurónio engravatado com uma pasta de papel debaixo do braço, a apresentação aos outros histéricos dos dados estatísticos que demonstram irrefutavelmente que qualquer percurso de carro para o trabalho tem mais hipóteses de ser fatal do que uma viagem de avião.
Mas esta cabecinha, que gosta mais da terra do que do ar, acha que controla o carro. Já o passarinho, para além de andar a bailar nas nuvens, é pilotado por uma pessoa que não conheço, sem quaisquer dados relativos à sua sanidade, suspeitando apenas que lhe devem faltar meia dúzia de parafusos para ter escolhido (e investido muito) numa carreira profissional que o mete a descolar e aterrar canários de ferro.
Na porta de embarque penso que se calhar não precisava mesmo de ir. A vida por casa é boa, tenho os meus cães, as minhas plantas, a pastelaria onde sou mal atendida, posso pegar no carro e ao fim de poucas horas, seguindo por uma qualquer estrada nacional, se não for abalroada por uma viatura conduzida por uma pessoa embriagada ou por um camião desgovernado, posso chegar a um sitiozinho à beira mar, onde comerei um peixinho fresco, quem sabe até uma salada com pepino e pimentos. Por que raio quero eu ir ao país dos outros, ver monumentos e comer comidas piores que as aqui da terra?
Entregues os documentos, enquanto percorro a manga (a qual chamo demasiadas vezes de mangueira) que me levará ao passarito, caminho à força da vergonha que seria agora, depois de todo o esforço e dinheiro gastos, voltar para trás porque sou uma mariquinhas pé de salsa. Desta vez pior ainda, porque levava os miúdos e, se desse meia volta, que raio de mensagem passaria aos meus filhos? A mãe tem de ser forte e andar de avião é o que eu faço numa quarta-feira normal, vamos meninos.
Sento toda a gente, digo que é tudo normal enquanto a minha cabeça me segreda que ainda há tempo. Ainda há tempo para fugir dali, para aquele almoço à beira mar. Vamos, Cátia, nós, os teus neurónios, fugimos contigo.
Sentados, cintos postos, vejo a assistente de bordo assinalar máscaras e saídas de emergência concluindo, como sempre, a inutilidade de tudo aquilo. A cara de cada uma das assistentes diz isso mesmo: que aquilo serve apenas para ocupar tempo e cumprir procedimentos, porque se der merda vamos todos desta para melhor num espetáculo de fogo e luzes.
Mostro-me atenta porque tenho pena das assistentes. Têm de estar ali com aquela treta, coitadas. Vamos lá respeitar o trabalho das senhoras. Pode ser que, se isto der para o torto e houver um deus, ele veja como fui empática nas minhas ultimas horas e me poupe. A mim e à minha família.
Antes de descolar olho com atenção para todos os passageiros à procura de uma cara que tenha ar de quem vai morrer nas próximas horas. Não sei bem que ar tem uma pessoa que vai morrer numa queda de avião, mas procuro exatamente por isso. Olho atentamente para cada rosto e tento perceber se é gente que tem as horas contadas. Lembro-me de quando fui a Roma, na viagem iam mais de quinze padres. Nunca me senti tão segura. Não porque seja crente, mas porque me pareceu que deus nosso senhor não chamaria tantos funcionários para se reunir no mesmo dia. Pura lógica de gestão empresarial.
Os motores começam a fazer-se sentir e, quando as rodas saem do chão, entra o desespero. Agora já não posso fazer nada. Ligo o cronómetro e cobro ao piloto (cobro silenciosamente) o tempo que nos prometeu demorar. Ao fim de trinta segundos preocupa-me que o relógio esteja avariado, parece-me que estamos no ar há, pelo menos, duas horas e meia.
Sofro em silêncio. Só o meu marido sabe o desgaste a que me sujeito. Ele e agora todas as pessoas que lerem este texto.
Olho à volta para perceber se sou a única chalupa. Confirma-se. Estou sozinha na insanidade. Tento concentrar-me nos petizes, acreditando que a sua necessidade de apoio me tirará daquele pensamento idiota, obrigando-me a estar focada em ser a mãe descomplicada e viajada que irá tranquilizar as suas crias assustadas. Acontece que, felizmente para a minha família, eu sou a única choninhas. O meu marido segue viagem passado dos carretos por causa da demora para despachar a mala e por causa dos atrasos para entrar no avião. O meu filho sentiu o avião tirar as patitas do chão, disse uau e enfiou as ventas no jogo. A minha filha, a quem eu disse olha estamos a voar, respondeu: sim, eu sei, estamos a voar. Onde estão os autocolantes que prometeste?
Fria e implacável.
Dei-lhe dois cadernos de autocolantes, que ela colou em mim, durante as duas horas que se seguiram.
Quando o piloto diz que vamos iniciar a aterragem todo o medo desaparece, significando que tenho a forma mais estúpida de andar de avião alguma vez reportada na história da aviação, sendo que sei, com todos e detalhes e factos, que a aterragem pode ser a fase mais difícil e perigosa de todo o voo. Mas nesta cabeça de berlindes desorientados, quando o piloto diz que vamos começar a descer eu ouço que já chegámos. Pode guinar a gaivota para a direita, ajustar o papagaio para a esquerda, ir de cabeça para baixo, como quiser. Assim que ouço aquela frase, apesar da altitude, é como se já tivesse as rodinhas no chão.
Até fico alegre com as dores de ouvidos. Ofereço pastilhas, tiro fotografias e aponto lá para baixo, como quem faz alguma ideia do que raio está a tantos pés de altitude.
Estas foram as minhas anotações no voo de ida:
Eu tento ser desenvolvida, mulher viajada, que vai aqui e ali. Mas metam-me num avião e eu perco tudo. Volto a ser a menina assustada que só quer estar no meio das suas coisas, regar as suas plantas, passear os seus cães. Não nasci para ser uma mulher corajosa. Nasci para estar no meu canto.
À minha volta todos aguentam o medo porque querem chegar a um sítio. Duvido que alguém queira estar aqui.
Sinto-me um pato. Aparento (eu acho) uma certa calma, quando as patinhas, por baixo, não param de bater.
Se calhar toda a gente percebe que estou uma pilha.
Ainda falta uma hora e pouco disto. Parece que aqui estou há 3 dias.
No regresso instala-se a ansiedade de chegar a casa. Estou cansada do passeio, tenho quilómetros a mais nas pernas, o aeroporto parece sempre apertado (e neste caso estava mesmo muito apertado por causa dos voos com atraso) e eu só queria conseguir teletransportar-me para casa. Já estava visto, o meu trabalho naquele território estava cumprido, nada justificava mais um segundo em terra alheia.
Estas foram as minhas notas no voo de regresso:
A viagem de regresso parece ser ainda mais aflitiva que a de ida. Estava à espera do contrário. Ia dizer normalmente, mas é mentira. Acho, ou fico com a sensação de que o regresso é mais fácil. Talvez isso aconteça porque depois de aterrar sei que não me espera outra viagem tão cedo e na ida, no fundo da minha cabeça, está lá a noção de que, para voltar para casa, tenho de passar pelo castigo outra vez.
Desta vez olho à volta e vejo toda a gente tranquila, quer dizer, quase toda a gente, a maioria, vá. Mesmo assim não consigo fazer resultar o velho truque de prestar atenção aos assistentes de bordo, confiando que se eles andam tranquilos na vida deles, a servir cafés, chás, suminhos e wiskys, é porque está tudo normal. Esta vida nas nuvens não é para mim.
Dou comigo presa na ideia de que quero ir a mais sítios e, para o fazer, tenho de deixar que um pássaro me leve. Será que uma pessoa se habitua mesmo? Será que se faz isto vezes suficientes para não se sentir uma absoluta aflição e desespero? Um desespero que controlo, uma ansiedade com a qual negoceio, mostrando-lhe evidências, dizendo-lhe que olhe à volta e veja como os outros estão tranquilos, como passam por isto como quem faz uma viagem de carro. Se calhar estão como eu, patos no lago.
O meu filho está tranquilo, joga desconsiderando onde está, tem sido assim em ambas as viagens. Parece que está no sofá a jogar. A minha filha sabe que está no avião, mas não faz caso, o que é normal porque é pequena demais para ter consciência de onde estamos, do que significa, de facto, voar.
O avião abana um pouco. Eu estremeço como se fosse um terramoto.
Há uma meia hora o piloto falou aos passageiros. Dizia que o tempo estava bom, que era uma rota direta, quanto tempo faltava e que na chegada se estimavam 26 graus. Quero lá saber dos graus. Quero saber que não haja turbulência, quero saber porque raio é preciso dizer que a rota é direta. Há situações em que temos de ir à volta? Se há tenho de ver disso, porque tenho de estar psicologicamente preparada para tal.
Como é que vou a Londres outra vez? Como é que levo o miúdo a ver a Legoland? Como raio vou um dia destes a nova iorque? Como é que vou fazer para ir às Maldivas? Tanta hora de voo, meu Deus.
Para o ano que vem tenho de levar os miúdos à Madeira. Ai, credo. Que parvoíce. Precisava de ter aqui ao meu lado aquelas pessoas rijas que conheço, aquelas que em principio acredito que não se borram todas.
O tempo não passa de maneira nenhuma e eu vejo-me aflita para meter a cabeça noutro sítio que não seja estar aqui. O segredo é mentir à cabeça e fazer de conta que se está noutro lado, focar a atenção noutra coisa, é o que tento fazer com este texto, estou a tentar pensar nele para não estar sempre com os olhos nas horas. Mas os olhos não saem das horas.
Ontem fui visitar um blog de uma antiga assistente de bordo. Conheci-a no tempo dos blogs, quando tive o meu primeiro blog na Sapo. Nessa altura ela já não era assistente de bordo, trabalhava, segundo sei, a gerir uma equipa. Mas falava muitas vezes de ter sido assistente de bordo, de não ter medo de voar, de ter nervos de aço. Gostava de ter nervos de aço daqueles.
Dois dias antes de regressarmos o Nuno disse-me que ia receber um livro de uma assistente de bordo que fez várias maratonas (ganhou algumas delas), começou a correr já com mais de 30 anos
E começámos a descer. O medo acabou, eu tirei fotografias às asas do avião e, ainda em território espanhol, eu dizia à minha filha que lá de cima víamos bem a Serra da Arrábida.
Revi-me, ri-me muito!
Partilho totalmente dessa fobia. São horas de sofrimento atroz a pensar continuamente que vou morrer. Sem filhos penso que sou uma egoísta que os vai deixar órfãos.
Não controlar a condução, pensar que desafiar a gravidade numa lata gigante não faz sentido e é uma afronta aos pássaros não costuma ajudar.
Álcool, comprimidos para dormir também não.
Tal como tu, quando dizem que estamos a meia hora de aterrar penso ufa ! Acabou! Não era agora já a chegar que isto ia cair!
As estatísticas valem-me de zero.
Desde que entro até aterrar fixo-me nas hospedeiras para avaliar nas suas caras se corro risco de vida.
Juro sempre que não volto a voar mas depois quero ir a sítios e caio na esparrela novamente.
É angustiante. Não há nada pior.