Quase atropelamento
60 |Chamemos-lhe uma espécie de conto, não sei se tem qualificação possível
Ainda não era meio-dia e já se podia avaliar que se tratava de um dia levado do caralho. Os catraios acordaram com a missão de foder os cornos aos pais e a mulher, passada da mona que já estava, em meia dúzia de berros decretou que se queriam estar armados em grunhos ninguém arredava pé de casa e que se entretivessem com aquilo que para lá havia. No tempo dela não havia metade e a petizada criava-se na mesma.
Depois agarrou no aspirador e começou a tratar das assoalhadas ficando incapaz de ouvir as reclamações do mais novo e os impropérios do mais velho.
Naqueles dias, em que não concordavam com nada, punha-se a pensar de quem tinha sido a ideia de ter filhos. Provavelmente dela, levada pelas hormonas, nos ciclos que bem se conhece e que tiram uma parte da capacidade de raciocínio a uma pessoa para gastar tamanha energia na gestão dos ovários.
Ele meteu-se no carro para ir buscar o frango que alguém já estava a assar, sabendo que, sendo princípio de mês, ia apanhar uma fila filha da puta para conseguir caçar o bicho. Ainda assim, não lhe apetecendo a espera, reconhecia que a sorte da mulher era pior, já que era ela, com os berlindes a dar sinal de afetados, que, na sua ausência, se via a braços com o management dos terroristas menores.
Saiu cedo para ir com tempo, dando a nota, antes de bater com a porta, que ia com vagar para arranjar lugar perto da churrasqueira, evitando assim que no trajeto restaurante - viatura, o passarito ficasse a atirar para o fresco.
A mulher nem o ouviu, entretida que estava a cuspir caralhadas porque os cabrões dos miúdos deixavam tudo espalhado e era ela, doente das costas, pejada de putativas hérnias, a avançar na idade, com dificuldades nas articulações para se voltar a erguer, que andava na posição de cu para o ar a apanhar peúgas porcas deixadas debaixo das camas, cotos de lápis que se fincavam nos pés quando se entrava no quarto sem chinelos e folhas de trabalhos de casa nunca feitos porque aquele atrasado traz as merdas e atira tudo para qualquer lado.
Que Deus e a Santa Maria das Mães de tola à banda a perdoassem, mas, não fosse ter ainda algum controlo sobre si mesma e já lhes tinha enchido as peidas de biqueiros.
Antes de ligar o carro olhou para o relógio e fez as contas: faltavam quarenta e cinco minutos para que o frango estivesse pronto e ele demoraria dois minutos a chegar à churrasqueira contando com distância e estacionamento. Contemplou voltar a casa e ir buscar os sacos do lixo que estavam atestados há dois dias, de barriga tão cheia que as bocas já nem se conseguiam fechar, mas se voltasse tinha de explicar que ia buscar o lixo e, caso tivesse o azar de se cruzar com a mulher que tinha vindo à cozinha buscar o detergente para lavar o chão, assanhada como estava, levava logo ventas adentro que aquela merda estava assim vai para dois dias e não havia necessidade disso. Qualquer dia faço o mesmo com a tua roupa e só vais dar conta quando fores para o escritório com as cuecas todas cagadas.
Carregou no botão e arrancou muito lentamente.
Mal curvou para sair da rua viu qualquer coisa a mexer. Ocorreu-lhe que pudesse ser um bicho perdido e, tendo tantas intenções de o salvar como de o matar com uma valente panada, abrandou ainda mais o carro. Estava já ele convencido de que se calhar estava a ver coisas, sai um sacana de um puto de trás de um balde do lixo daqueles grandes verdes. Atravessou-se à frente do carro e só não ficou ali esticadinho para todo o sempre porque o condutor estava à espera de que um cão escanzelado por ali andasse.
Apanha um susto de morte, porque isto uma pessoa dar uma trancada num cão é mau, mas ceifar a vida a uma criança é mil vezes pior, olha para o lado e vê o progenitor do petiz. Mais largo do que alto, um tanto parecido com uma cómoda antiga de gavetas fundas, com ares de quem puxa ferro que nem um boi, arregaça as mangas, levanta os braços e começa a caminhar para a viatura para tirar satisfações com o motorista que certamente estava atrás de uma moita e só de lá saiu para lhe tentar passar a ferro o anjinho.
Ora querem lá ver este cara de uma vaca velha, pensou para consigo, verdade que agastado e incrédulo, mas acima de tudo capaz de aproveitar aquela oportunidade para ver se arreava uns bananos em alguém porque isto, por mais que uma pessoa seja pela paz, às vezes calhava bem dar umas mocadas numa besta.
Abriu o vidro e disse: diga?
O Hemnes continuava a caminhar em direção ao carro, a mulher a tentar detê-lo, Ó Tó Zé, olha que o nosso filho é parvo e mandou-se para a estrada à confiança, mas, ignorando a única equilibrada e atiçado pela pergunta do primeiro, aventou: você tem de olhar por onde anda porque podem aparecer crianças e animais.
E você tem de tomar conta do seu filho, que é bem burro e só está vivo porque eu estava com mais atenção a ele do que você que o fez. Olhe, de cabeça, têm competências muito parecidas.
O pequeno armário fica enraivecido, sacode o braço da mulher e segue em força. Dá-se uma troca de palavras, Vai-me bater? Vai-me bater, é? Só acerta a primeira, quando, sem ninguém estar à espera, o carro, que tinha ficado de porta escancarada, arranca, aparentemente sozinho, qual Transformer embruxado, bate noutros três, dá a volta e atropela o paizinho da criança.
Belo estardalhaço que ali estava armado.
Ai meu deus, ai meu deus. De quem é a culpa agora? A culpa é sua que o carro é seu. A culpa não é minha que o carro tem meses e ainda está na garantia. O galifão estendido no chão, qual pardal caído da árvore e sai o gaiato do carro. Mãe, viste, ganhei ao papá!
A alegria das crianças é uma coisa maravilhosa.
Deitou-se a mão ao pescoço do Malm e confirmou-se que ainda tinha pulsação. Era melhor chamar uma ambulância. Está-se a ligar para o 112 quando o bisonte se levanta e diz que não é preciso nada. Ele e o filho fazem daquelas brincadeiras a toda a hora, não havia necessidade nenhuma de chamar as autoridades.
Enfiaram-se os três à pressa num carro sem matrícula e ala que se faz tarde.
Aturdido olhou à volta: três carros amolgados, fodido que estava o prémio do seguro, mas pior do que isso era explicar tal acontecimento aos vizinhos, proprietários dos demais veículos, todos velhos reformados desejosos por gastar horas para resolver a mais pintelhosa das merdices.
Meteu-se outra vez no carro. Não estava ninguém na rua, se fosse para falar mal da vizinha que comia o colega do trabalho, toda agente a via, agora numa desgraça daquelas nem um caracol para pôr os cornitos ao sol.
A parte boa era que ainda ia a tempo de apanhar o passarinho quente para o almoço.
No dia seguinte a mulher saiu para ir buscar pão ao supermercado e voltou ao fim de dois minutos, gritava que mais parecia uma cabra na matança, que alguém lhes tinha ferrado uma das boas no carro, certamente um monte de esterco sem seguro que, depois da tropelia, se tinha posto a andar. Estava farta, ora as cegonhas lhe borravam os vidros, ora lhe davam cabo do carrinho quase novo em folha. Tinham de mudar de casa, de cidade, de distrito, de país, aquilo ela um antro de gente inqualificável.
De repente, pareceu-lhe bem.



"um tanto parecido com uma cómoda antiga de gavetas fundas" 😂😂😂😂😂
És a melhor ! 💖
Ahah muito bom. Parece-me que é ligeiramente autobiográfico, a parte doméstica da coisa. 😂